Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2005
Mãe a vários milhares de quilómetros de distância:
Olá, querido... estás bom? Tudo bem? Então, o que tens andado a fazer?
Filho de nove anos:
Está tudo bem, olha, agora estava a ver os Morangos com Açucar.
Mãe a vários milhares de quilómetros de distância:
Ah sim? E então, novidades? Aconteceu alguma coisa importante?
Filho de nove anos:
Por acaso, até aconteceu, sabes? Descobriram quem violou a Matilde.
(pausa para repeat e rewind no cérebro materno)
Mãe a vários milhares de quilómetros de distância, como quem não percebeu:
Quem fez o quê a quem?
Filho de nove anos:
Quem violou a Matilde, sabes? Afinal não foi o Nelson que agarrou nela e que...
Mãe a vários milhares de quilómetros de distância, atalhando num ápice:
Pronto, pronto, ok, não preciso de saber os pormenores, contas-me depois, agora adeus e porta-te bem! Olha, e já agora chama aí a tua avó, sim?
(para a próxima, envio um SMS e já não se me azeda o café viennois)
Quinta-feira, 15 de Dezembro de 2005
Que penso assim, não é novidade nenhuma: momentos de separação entre filhos e pais, são fundamentais para todos. É bom que eles por vezes fiquem com primos, tias e avós, que conheçam as suas pequenas idiossincrasias e taras menores, que entrem noutras rotinas (e que percebam que se podem fartar, não apenas dos pais, mas de terceiros, para depois concluírem que os pais não são assim tão maus como isso...he he). E, depois, há coisas de avós e de tios: os avós e os tios estragam os netos e os sobrinhos, permitem-lhes liberdades inusitadas, levam-nos a sítios diferentes, contam-lhes outras histórias, ensinam-lhes brincadeiras novas, cozinham ovinhos mexidos à meia-noite e preparam leitinhos com chocolate às três da manhã, não obrigam a tomar banho, fazem tranças e risco ao lado, e levam os meninos à praça e ao teatro. No entretanto, os pais aproveitam para namorar, conversar e viajar (de preferência, tudo ao mesmo tempo em fins-de-semana prolongados).E é aqui que tudo se complica.
O planeamento propriamente dito é sempre uma excitação: vamos para aqui, não!, vamos antes para acoli; esta cidade conhecemos, mas não vimos o não sei das quantas, ah! e com neve deve ser linda... e christmas markets, vamos a uma que tenha muitos christmas markets!, não preferes um sítio mais quente? tropical? não, vamos para a neve.. .. Enfim, atingido que seja o consenso, feitas as reservas e as malas de todos, lá deixamos os miúdos com os familiares respectivos. Em arrancando de manhã cedo, isto tem lugar no dia anterior. No momento das beijocas do adeus, já o estômago se me começa a enrolar tipo jibóia refastelada a digerir um gabiru. Adeus, meus queridos, portem-se bem, ó mãe, podemos ir com vocês, então, já falámos sobre isso, vocês gostam taaaanto de ficar com os avós, vá, adeus, adeus...! PUM!
Fecha-se a porta e o coração começa-se-me a mirrar como se o estivessem a embalar a vácuo. Nessa noite, como ainda estamos cá e eles ali ao lado, meia dúzia de ruas abaixo, a coisa escapa: acordo bem-disposta e cheia de energia, estado que se mantém no caminho para o aeroporto. balcão 27, check in, porta 13, embarque, não fumadores, coxia, fasten seat belts, pastilha elástica para os ouvidos e, no momento da descolagem, invade-me por fim uma angústia da separação tão grande, mas tãaaao grande, e uma vontade tão colossal de inverter a marcha daquela merda, afocinhar com o avião no chão e correr a resgatar os meus meninos das garras dos avós, que se torna mais agradável ir ao lado de um bombista suicida prestes a mergulhar de cabeça em setenta e duas virgens, do que ao meu.
Na primeira meia hora de voo, suspiro, fungo, arrependo-me, choro que me farto e gasto uma caixa de kleenexes; quando chega a comida, lá me distraio com o salmão fumado e as tristes vagens verdes que não como, procurando pelo meio qualquer coisa que saiba a chocolate. Chegadinhos que somos, pronto: é uma festa, os dias passam a voar, compro lembranças, escrevo postais, envio sms e mails e instala-se em mim uma saudade alegre e mansa; não raro, quando faço as malas no regresso, concluo que me soube a pouco e que, afinal, ainda me aguentava mais uns dois ou três diazinhos, na boa.
Nada a fazer: não obstante estar careca de saber como são e onde me levam, as minhas contradições de mãe seguem invariavelmente o mesmo padrão, ano após ano, filho após filho.
Quinta-feira, 8 de Dezembro de 2005
Ele, o tal dez reis de gente com cinco anos: Mãe, vamos fazer um concurso de palavras acabadas em ão?
Eu: Vamos!
Ele: Cão!
Eu. Pão!
Ele. Coração!
Eu: Camião!
Ele: Mão!
Eu: Tostão!
Ele: Chão!
Eu: Perdão!
Ele: Cabrão!
(...)
End of Game.
Sábado, 3 de Dezembro de 2005
Isto das decorações de Natal como forma de celebração do espírito da Família, there´s a season to be jolly, lalalalalalalala..., tem que se lhe diga.
Começa tudo imbuído daquele espírito maravilhoso de sermos uma comunidadezinha fortificada pelo amor, pela alegria e por outras utopias que tais, e toca de enviar o entusiasmo inicial à garagem e mandá-lo trazer os pacotes todos para cima. A princípio, a malta ajuda e participa: pega daqui, escorrega dali, empurra dacolá, até ao elevador e, se preciso for, até ao infinito e mais além. Ao entrarmos em casa, já os bofes estão assim um bocadinho como que mais para fora do que para dentro, que a árvore é artificial e pesada, os enfeites são muitos, os anjinhos são de gesso, as bolas, de vidro, e os pais natal, de madeira.
Colo a cuspo as vontades, que começam a dispersar-se à primeira imagem dos morangos: vá lá, meninos, bora aí fazer isto, o que ajudar mais põe a estrela lá no cimo (estranhamente, esgatanham-se, por este privilégio final) e lá consigo arrastá-los para a montagem da coisa propriamente dita.
Ora bem, abrir as ramagens de uma árvore de natal de metro e setenta com a consistência de um abeto adulto dos apeninos, é tarefa, no mínimo, chata como a potassa: raminho a raminho, abre e puxa, abre e puxa, até ficar tudo redondinho e com o formato devido, que é parecer o mais natural possível. Por esta altura, quase sempre valores mais altos se levantam, normalmente, uns providenciais trabalhos de casa que haviam ficado esquecidos na bruma dos tempos. E lá me desaparecem eles para os respectivos quartos, fingindo semblante responsável. Quando acham que aqui a moira já abriu e puxou todos os fucking raminhos da puta da arvorezinha, aparecem alegremente na sala, de volta ao convívio natalício-familiar.
Então e agora, mãe? Agora é pôr as luzes, mas primeiro temos de as desenrolar.
E lá está: desenrolar as luzes (mal enroladas e à pressa no fim do Natal anterior) é uma graaaande maçada. As lâmpadas prendem-se umas nas outras, metade estão partidas e eu nunca me lembro de as ligar antes de as envolver na árvore; depois, quando constato que estão fundidas, tenho que as desenrolar, enquanto a minha língua desenrola em murmúrio (era bom, era) meia dúzia de asneiras, pouco condizentes com a quadra e com o momento, que se quer de alegria e paz.
Ultrapassado o pseudo-drama da iluminação, chega a altura dos enfeites. Aberta a caixinha das surpresas, três narizes mais ou menos curiosos (mais menos, do que mais, que o Zé Milho está a dar uma aula de hip hop), e começa finalmente a decoração a quatro.
Estranhamente, com tanta bola, estrela, anjinho e guirlanda, de todas as cores, tamanhos e feitios, cada um deles só quer o que os outros têm, dando-se então início à sinfonia do eu vi primeiro e dá cá isso, meu ganda troll. Os primeiros cinco minutos, são passados a disputar o direito à posse de uma bola encarnada (sendo que existem mais dez iguais); os outros cinco, o direito a uma estrela dourada (de que há mais seis) e por aí fora, até ao desmoronar completo da fraternidade natalícia e da minha paciência - que é o momento em que se escolhe qual deles porá a estrela branca (esta sim: única) no topo da árvore.
Por esta altura, já as minhas adoráveis crianças esgotaram o léxico de injúrias e ameaças aprendido no recreio da escola, acrescentaram mais umas de sua própria lavra, ensaiaram alguns tabefes e beliscões uns nos outros, e eu já os expulsei dali para fora. Com indisfarçável alívio, acabo por compor os finalmentes em agradável solidão.
Chamo-os, então (não tenho safa possível) para o momento da estrela branca: o vencedor é tirado à sorte, os outros dois, perdedores, fazem juras de ressentimento eterno e congeminam a aplicação de um ou dois cascudos no fanfarrão, na ausência dos adultos.
Nos dias seguintes, perguntados que são sobre a árvore de natal, prevalece unanimemente a versão oficial: foram eles que alancaram com a dita escada acima, foram eles que a montaram e eles que a enfeitaram. O pai, esse traidor, corrobora. Eu, basicamente, ter-me-ei limitado a supervisionar a operação. Ou nem isso: se formos a ver bem, nem lá estive. E eu não os desminto.
Todos os anos, por esta altura, a sensação de ser uma ganda-mega-major-mãe-totó-comida-por-todos-os-lados-menos-pelo-lado-que-liga-ao-continente, agrava-se.