Quarta-feira, 19 de Abril de 2006

...

em viagem I



“Mãe, sabias que o senhor incrível dá murros nos maus e faz poffff! E a mulher elástica estica muuuuuuito os braços, estiiiica e... iááááááááá!, também mata os maus. Depois há o Zezé, que não tem poderes e só se transforma num Diabo, e não faz nada, mas a Violeta atira uma bola contra os maus e vrrrrruuuuuuuummmm...mata-os a todos! O mais mau de todos é o Sindrome que lança uns raios assim, zzzzzzzzzt!, mas o Flecha corre muito, catapumcatapum, e ele nunca o apanha...”


(Duzentos quilómetros de onomatopeias depois, e varreu-se-me a tristeza miudinha de saber que vai passar a ver o mundo através de lentes inquebráveis. O que interessa é que veja o mundo.)




em viagem II


- Mãe, nós morremos para sempre ou vivemos outra vez?

- Não sei, filho, há quem diga uma coisa, outras pessoas dizem outra...olha, como nunca morri, se queres que te diga, não sei.

(silêncio prolongado. os carros lá fora. as travagens. as buzinas. as pessoas. a cidade a mexer. a dúvida a remexer.)



- Mas, mãe...quem é que gostavas que ganhasse?


(eu longe. em casa. no cinema. na revisão do carro. nas coisas por pagar. no jantar por fazer.)


- ...Que ganhasse o quê, filho?

- Sim, gostavas que ganhassem os que acham que se vive outra vez ou os que acham que morremos para sempre?

- Gostava que ganhassem os que acham que vivemos outra vez. Era bem mais giro.


(silêncio breve. brevíssimo. satisfeito. completo.)


- Pois. Era só viver...e viver...e viver...e viver....e toda a gente a viver...a viver... a viver... a viver...


(e lá fomos a viver e viver e viver até casa. felizes. a imaginar a eternidade do nosso amor.)



em viagem III



Adoro conduzir. Adoro. Existe, não obstante, um pequeno problema: todos os outros condutores, à excepção do meu marido e do meu pai (sim, sim, já sei: Freud explica). O convívio diário com o lixo que polui as estradas portuguesas é me difícil e desgastante, já que, cada falta de civismo irresponsável, tomo-a como uma espécie de ofensa pessoal, a mim e a toda a minha família até à terceira geração. E é então que eu, mulher habitualmente calma e ponderada, sou vítima de uma estranha mutação genética e, em menos de um minuto, passo de Dr. Jekill a Mr. Hide, adquirindo a imediata capacidade de desejar a morte, com dor, do meu semelhante.

Para tanto, basta algo tão inofensivo como o meu semelhante meter-se à minha frente a 20 na faixa da esquerda, marcar passo até ao sinal verde, que entretanto passa a laranja e, quando fica vermelho, zuuut!, acelerar e deixar-me parada no dito vermelho. Nos segundos que se seguem imagino-me com terríveis poderes telequinéticos tipo Carrie, a provocar o despiste do semelhante em questão e ficar a vê-lo agonizar entre os ferros retorcidos.

A frustração raivosa que então se apodera de mim tem várias consequências negativas que, infelizmente, não consigo evitar. A primeira, é que me tira anos de vida, uma vez que a raiva e o ódio, mesmo que durem apenas um nanagésimo de segundo, fazem mal à pele. A segunda é pior e traduz-se em conversas pedagógicas e edificantes, como a que se segue:



Eu: Ai o cabrão do velho que não me sai da frente e eu, que ainda não fiz o jantar!

Fedelho n.º 1: Mãe, estás a dizer uma asneira muito feia.

Fedelho n.º 2: Pois, mãe, se fossemos nós, se calhar, já tínhamos levado, mas como és tu...

Eu: Calem-se e não me chateiem. Já vos disse que, quando ouvirem a mãe dizer estas coisas no carro, não liguem, ignorem, esqueçam.

Fedelho n.º 3: A gente não liga mas ouve, temos ouvidos é para ouvir, e se tu podes dizer asneiras, porque é que a gente não pode?

Eu: Porque vocês são pequenos e...ai esta vaca que me ia batendo...pronto, porque não, porque eu digo que não podem e eu é que mando!

Fedelho n.º 3: "Porque não" não é resposta, foste tu que nos disseste.

Fedelho n.º 2: Além disso, não se chama "velho" às pessoas de idade, também nos ensinaste isso, lembras-te? Diz-se "velhinho", que é mais simpático.

Eu (em anotação mental): Prá próxima, não me posso esquecer de dizer o cabrão do velhinho.

Fedelho n.º 3: Ó mãe, e porque é que chamaste "vaca" àquela senhora, também é asneira?

Eu: Se não estiveres a referir-te àquele animal preto e branco que dá leite e muge, é.

Fedelho n.º 1: Mas o que é que quer dizer?

Fedelho n.º 2 (interrompendo-o): Ah, isso eu sei, é o mesmo que pê - ú - tê - á!

Eu: Não digas asneiras!

Fedelho n.º 2: Mas eu não disse, mãe! Eu só soletrei, olha: pê-u-tê-á, isso não é dizer a asneira...

Eu: Está bem, está bem, pronto. Vá, saiam lá que chegámos a casa. Dasse (em surdina).

Todos (em coro): Ó mãeeeee, mas isso também é asn...

Eu: PELAMORDEDEUS!

publicado por Vieira do Mar às 16:21
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Sofia Vieira

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