- Filha, desculpa, mas para que é tanta coisa? Vais fugir de casa? Para o exílio? Vais-te mudar para a costa alentejana? Não precisas de metade desta tralha, francamente.
- Isso é que preciso, MÃE! É tudo im-por-tan-tís-simo.
- Ah. Ok. Portanto, deixa cá ver, estas maçãs todas são para quê? E os iogurtes líquidos? Vais para o meio do mato? É o kit de sobrevivência?
- Então, mãe, somos cinco, são três horas de expresso, se ALGUÉM tiver fome...
- E estes jogos todos, e o baralho de cartas, o monopólio?
- Já te disse que são três horas, ALGUÉM pode querer distrair-se...
- Vinte pares de cuecas para uma semana? Cinco sutiãs? Dez jogos para a playstation?
- E tens sorte em eu não levar a Shelby*! Olha, tens ali as instruções para a alimentares, não te esqueças.
- Pois, era giro, era, ires de aquário das tartarugas atrás. E para que é que levas esse cofre? Tens lá dentro algum tesouro?
- É onde guardo a chave do meu diário.
- Mas porque é que não juntas a chave, que é minúscula, ao teu porta-chaves? Tens que ir com esse mastronço atrás?
- Está bem, se calhar não é má ideia.
- E este saco, com coisas de vidro lá dentro?
- São vernizes.
(abro-o. contém todos os meus vernizes, roxos, encarnados, laranja, brancos)
- Olha, podias ao menos ter pedido. E para que é que queres isto tudo? Vais vendê-los para a praia, é?
- É que, assim, eu e a I. podemos querer pintar as unhas de acordo com a roupa, percebes?
- E estes cadernos?
- Um, é o meu livro de recortes de anedotas; os outros, são os meus diários.
- E para que é que levas essas botas para a praia?
- Pois...eu...
Meia-hora depois de duras negociações e a bagagem ficou reduzida a quatro sacos e meio, ou seja, levou à mesma o quinto, mas meio vazio. E lá foi, com o seu grupo (a seita tem um radar...), três rapazes e duas raparigas, com os seus vários pares de havaianas, os quilos de roupa interior, a maquiagem roubada à mãe, as três camisas de noite, as botas, o peluche favorito, as maçãs, a polaroid, o livro do Eragon e os ouvidos cheios de recomendações (tem o telemóvel sempre ligado, obedece à mãe da I., põe protector, não vás para fora de pé, cuidadinho com a rapaziada...), feliz e contente por me ver finalmente pelas costas.
E eu ali, no terminal das camionetas, a tremer o beiço, a vê-la, merda!, a afastar-se e a sentir que pronto, agora é que é, está a sair do ninho e eu não vou estar lá sempre, para lhe aperfeiçoar os voos, indicar-lhe as melhores rotas, amparar-lhe as quedas...
Um vazio estranho, que não é bem vazio porque também é uma coisa alegre e boa, de esperança e de olhos postos no futuro. Um vazio meio cheio, vá, como aquele quinto saco que ela levou consigo.
* a tartaruga, que, segundo as suas minuciosas instruções, só come se alimentada à boca, com uma pinça (yeah, right).
(ou da mobilidade dos conceitos teóricos)
- Mãe, fiz um desenho abstracto.
- Que giro, Joãozinho! E porque é que dizes que é abstracto?
- Porque não deixei nem um bocadinho de papel branco à vista!
- Mãe, este ano nas férias quero fazer trabalho assim tipo de caridade, sabes? Quero ajudar os velhinhos e os doentes, ou então tomar conta de crianças e ganhar dinheiro para comprar as minhas coisas. O que é que achas?
- Acho óptimo, Beatriz, há imensa gente sozinha que ficaria contente com um bocadinho de companhia, é uma excelente lembrança da tua parte. Agora, não me parece que seja o tipo de trabalho que se pague, é mais uma coisa que se faz de graça, para ajudar quem precisa, entendes?
- Sim, mas não faz mal, porque o importante é ajudar as pessoas...
(e, nesse momento, anjinhos de asa branca e pombinhas sorridentes carregando liras e raminhos de oliveira, inundaram o céu com os seus voos diáfanos de bondade e eu juraria até que ouvi as trombetas da paz ao longe...)
Uma semana depois, e aqueles jeans da bershka a chamarem-na, a mini-saia da roxy a berrar por ela e os Piratas das Caraíbas, parte II, a estrear.
- Olha, mãe, lembras-te daquela história do trabalho comunitário? Afinal mudei de ideias. Vou mas é dar massagens à família e aos amigos, que ganho mais.
E é este o cartaz que espetou à porta do quarto, sendo que, em vez das trombetas angelicais, ouve-se Shakira (consta que faz bem às cervicais, embora me custe a entender o enquadramento na categoria música relaxante):
Olhem, de boas intenções.
...quanto mais a FIFA...