O pai vai para o estrangeiro. Na impossibilidade de o presentear atempadamente com um desenho adequado à ocasião (são muitos, os afazeres da criança: lanchar, ver os morangos, jantar, ver o canal disney, enfim, esta vida é um ferro), o Joãozinho entrega-lhe uma nota de crédito, um verdadeiro vaucher:
Joãozinho:
- Mãe, e se nós, no fundo, formos a banda desenhada de alguém; e se não existirmos de verdade, apenas acharmos que existimos?
- ...
- Ou, então, se formos só desenhos animados a passarem na televisão de alguém muito maior que nós?
O Diogo aparece-me com a camisola cheia de autocolantes de um boneco preto com o coração a vermelho.
- Contribuíste, foi? Com quanto?
- Dei dois cêntimos por cada um.
- Dois cêntimos? Só?!
- Então, ela disse que eu podia dar o que quisesse e não me apeteceu dar muito…
- Sabes, ao menos, para onde é que vai tanta generosidade?
- Sei! Para a prevenção das doenças cardiovasculares.
- Ena! Muito bem. E o que é que são "doenças cardiovasculares"?
- São doenças do coração, claro! Eu também vejo o House, mãe.
... que sempre me assalta a determinação e o lar nestas alturas (...), e na esperança de lhes gastar aquelas energias que sempre trazem a mais da escola,resolvo organizar uma sessão de ginástica pré-jantar. Enroladas as carpetes e afastados os móveis, pespegamo-nos - eu e os putos - em frente à televisão, onde ponho a correr um vídeo de workout directamente importado da amazon, com as miúdas (remakes estilosos da Jane Fonda) que fazem aeróbica naquele vídeo do "Call on me". Não sabem, não se lembram? Eu refresco-vos a memória: trata-se de uma música de merda com um esganiçado qualquer a repetir o refrão praí mil vezes, boa para os pastilhados da nite, mas dançada por um grupo de gajas do mais giro e bem feito e perfeito que pode haver, as cabras. E lá começamos, eu, a minha filha e os meus dois filhos, nos aquecimentos da praxe; alguns minutos depois, está tudo a bombar. Só que, enquanto as mulheres da casa saltam e arfam a tentar acompanhar a pose e o ritmo impecável das boazonas, embora se sintam umas miseráveis badochas, os miúdos sentam-se no sofá com os olhos fixos no ecrã, num silêncio inesperado. Então, desistem já? Estão assim tão cansados?, pergunto-lhes eu, entre dois pontapés no ar e um na auto-estima, seguidos de um quase-desmaio. Não!, respondem em uníssono, Mas é que aqui vemos melhor as miúdas!, a fazer ginástica não dá, mãe! E lá ficam, mais atentos do que se estivessem a ver o último episódio dos morangos onde explodisse o colégio da barra em peso. Entretanto, chega o pai a casa e vê-nos naqueles preparos. Olha para a nossa esfalfice saltitante e para a performance televisiva das boas, olha outra vez para nós e ri-se; depois, olha melhor para elas (muito melhor, aliás) e já não ri. Segundos depois, está sentado no sofá ao lado dos outros, a testosterona familiar toda reunida, boquiaberta e solidária, numa basbaqueira muda que mete dó. Escusado será dizer que nem chegámos à parte dos abdominais: eu e a miúda, fomos mas foi jantar."
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Elas preparam-se amorosamente para a batalha, polindo e afiando a arma com que desferirão os golpes fatais nas suas inimigas, que são todas as outras MÃES.E a arma é...tcharaaan... o boletim de saúde!
O primeiro treino da recruta é no pediatra, esse homem bom e dedicado que, ao medir e pesar a criancinha, tende sempre a preencher os gráficos com valores um nadinha acima do real, não vá a mãe do rebento passar, num ápice, de babada sorridente a dragona raivosa e incendiar o gabinete com o seu hálito de fogo. Depois, já com o boletim de saúde entre mãos, devidamente preenchidinho, elas combinam reunir-se umas com as outras e é então que estala uma daquelas guerras surdas que de vez em quando têm lugar no mundo cínico do putedo maternal... a guerra do PERCENTIL.
Para quem não sabe, o percentil é a modos que a unidade de medida pela qual se afere o desenvolvimento físico das nossas criancinhas. Os parâmetros ditos normais situam-se algures entre o 5 e o 95, e dizem respeito ao peso, à altura e à relação entre os dois. O perímetro cefálico também costuma ser usado como arma de arremesso, embora como apoio na retaguarda, porque se refere apenas ao tamanho da cabeça.
A coisa funciona tal qual os putos nos balneários da escola (sim, estamos a esse
nível básico), em que ganha o meu porque é maior que o teu (como a rábula dos Gato Fedorento, não sei se estão a ver...).
Preparadas para a refrega, reunimo-nos num café, em casa, num banco de jardim,
wherever, sacamos dos boletinzinhos e toca de atirar percentis umas contra as outras como quem dispara balas de calibre 38,ai o joãzinho está no percentil 90, o bernardinho tem um perimetro cefálico de 55 centímetros, um crânio, um génio!, o meu pedrinho nasceu no percentil 95, quatro quilos e meio de gente, vejam lá, mas já está no percentil 100, é um comilão.... Pode introduzir-se aqui um elemento complementar, (também indicativo de forma física superior do infante) o chamado índice de apgar, mas não quero transformar este post num relambório técnico sobre questões de estratégia.
Entretanto, as mães com filhos no percentil algures entre o 5 e o 50 retiram-se, derrotadas, porque, a um nível subliminar, percentil baixo é sinónimo de qualquer coisa como mãe-vaca-negligente-que-não-alimenta-a-cria, ou, então, porque não estão dispostas a ouvir expressões simpáticas como não terás nanismo na família, filha? é que é hereditário, sabes... Não há pior do que a subconsciência que subjaz a estas alegres competiçõezinhas entre mamãs: a de que somos melhores mães, quanto mais alta e bem nutrida for a nossa criancinha - e que se lixem os factores hereditários, sociais e as idiossincrasias de cada um.
Seguimos depois para a batalha final, onde já só entram os pesos pesados, ou seja, as mamãs de filhos com percentil 50-75 ou mais. E lá continuamos, com uma enorme falta de noção e de mais que fazer, a comparar comprimentos fémur-coxa, ombro-cotovelo, tamanho das mãos, número de ténis que já não servem e largura de bonés que já não cabem... a atirar perímetros cefálicos, índices vários e percentis à cara umas das outras. O pior é que, como diz a do anúncio, por mim, passava a tarde
inteira naquilo.
Haja cú para nos aturarmos, irra."
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- Mãe, com que idade deste o teu primeiro beijo na boca?
...
A mentirinha piedosa (fiquei cheia de pena de mim) sai-me de rajada, sem pensar um segundo:
- Ai filha, aí pelos quinze anos, vá!...
(e eu, a lembrar-me que foi quase aos treze - onde ela se encontra agora - que o
M. me empurrou contra a cerca do campo de jogos e, enquanto o contínuo, distraído, ralhava com um grupo mal-comportado no outro canto, me enfiava a língua pela boca abaixo sem eu ter tido tempo de soltar um ai)
É claro que ela acreditou, até porque tinha acabado de fazer a mesma pergunta ao pai, que, algures entre a tontura e o desmaio, lhe respondera, aos trinta e dois.
(continua, infelizmente, continua)"
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Joãozinho, 18 de Fevereiro de 2007.