Na sala com o espertinho do meio a ver a FOX. Acaba a série e eu digo que vou mudar para a TVI para a casa dos segredos. E ele, aos berros, enquanto foge a sete pés para o quarto: "Sopeira super power activate! Ruuuun!"
Diálogo entre mãe e filha de 19 anos:
- Mãe, tens um livro do... do Proust, acho que se chama "Do lado de Swann".
- Tenho, é o primeiro volume do "À procura do tempo perdido". Para que é que o queres?
- O professor disse que temos que o ler. E depois fazer um trabalho de interpretação.
- Ahahahahaha!
- ...
Agora com 20, 17 e 13 (but still rockin´).
- Diogo, viste um saco pequeno de ração para gatos bebés que estava aqui na cozinha?
- Sim, comi-o.
Com uma troupe adolescente a caminho do sudoeste, a ouvir a M80 na ponte. alguém diz que o Duchovny dos ficheiros secretos faz hoje 53 anos.
Diogo vira-se para trás: "bem... o gajo dos ficheiros secretos já tem 53 anos!".
Todos: "Quem?! "
"O Mulder, dos ficheiros secretos!", repete.
Todos: "Não sei quem é..."
E eu, já cansada da conversa de surdos: "o gajo do Californication, pá!".
E todos: "haaaaaaaaa!".
- Mãe, tu achas o pai giro?
- Errrr… Sim, acho que sim.
- Mas sempre achaste?
- Sim, não há dúvida que o teu pai é um homem muito giro.
- Mas se não tivesses sido casada com ele e ele passasse por ti na rua, gostavas de o ter como namorado?
- (raisparta o miúdo!) Se não o conhecesse, talvez olhasse duas vezes, agora “namorado”, não sei.
- Porquê?! - Porque para se ter um namorado, a beleza não chega. -
- Então, o que é que falta ao pai?!
- Olha, querido, eu sei que é dia de semana, mas como já fizeste os trabalhos todos, podes ir jogar playstation até ao jantar, ok?
Mãe chega a casa cansada e vai ao quarto do filho mais novo, que lê um livrinho da Mónica - neste caso, da Magali e do Mingau (isto é só para experts).
Mãe deita-se ao lado do filho, encosta a cabeça ao peito deste e pede-lhe que lhe leia uma história, enquanto fecha os olhos, aquietada no remanso infantil.
Criança enfatuada e imune às carências maternas, responde: “Tá beeeem… mas só te leio as interjeições e as onomatopeias.”
...
Pois vinha eu de um café no Chiado, relaxadinha da vida, quando recebo uma chamada do gorgulho de 15 anos:
"Mãe, eu e uns amigos meus tamos aqui em casa. Fomos ao aki, comprámos umas tábuas, o berbequim, parafusos e buchas para montar umas prateleiras. Podemos começar a furar ou esperamos que chegues a casa?"
...
A mais velha chega a casa a chorar desalmadamente por causa de mais uma picuinhice com o emplastro. Depois de uma hora de soluços audíveis e de "não quero falar com ninguém", chega o emplastro e, presumivelmente, fazem as pazes. O do meio chega a casa e trás consigo uma matilha de emplastros borbulhentos e espinafrudos que quase batem com a cabeça no tecto. Mochilhas atiradas ao calhas. Baixos, guitarras eléctricas e baterias a serem afinados no quarto. Coisas que caem, gargalhadas alarves, outras que batem contra a parede, não quero nem saber. Do que se passa no quarto da filha mais velha, à porta fechada, ainda quero saber menos. O mais novo chega da escola cheio de fome. Numa hora, uma caixa de cereais e um litro de leite vão à vida. Traz consigo um amigo nerd cuja única qualidade é comer pouco. Os aspirantes a banda de garagem assaltam a cozinha em me vendo de costas. As pizzas congeladas do pingo doce, compradas para uma ocasião de extremo cansaço em que não me apeteça cozinhar, vão todas. Só dou por falta delas muito depois, na tal ocasião de extremo cansaço, claro. Filha mais velha pergunta se namorado emplastro pode cá jantar. E se a amiga que está a chegar, também. Os adolescentes de barriga cheia resolvem descer à garagem para ver a aprilia nova do filho do meio. Não podem sair dali porque ele ainda não tem carta e andam às voltas lá dentro. Vizinhos a queixarem-se de que eles são muitos, fazem muito barulho e que não fecham a porta de acesso à garagem, pondo em causa a segurança do prédio. Voltam a subir, dou-lhes uma esfrega que lhes entra pelo cérebro (que na verdade ainda não têm), lhes atravessa o corpo e sai directamente para a terra, como uma descarga eléctrica sem dor nem consciência. Voltam aos Led Zepellin (que devem estar a rebolar na campa, ou lá no sítio onde estão, coitados). Chega a amiga emplastra, fecham-se os três no quarto a ver um filme. A partir das sete, começa o mantra caseiro, que se repete de cinco em cinco minutos: "Mãe, o jantar já está pronto?". Tapo os ouvidos e entro no hard rock café: "Quem fica para jantar?". "Mãe, se não te importares o castro janta cá e depois vamos às esplanadas". O nerd fica cá a dormir, isso já sei, está com o mais novo numa outra dimensão, a jogar online com um paquistanês e uns suecos. Faço contas à vida, abro o frigorífico. Sustância, népia. Ao todo, somos oito. Saio à pressa para o talho, quero 16 hamburgueres. Chego a casa, o mantra a repetir-se vezes sem conta, vindo de todas as partes da casa, as vozes ecoam na minha cabeça, numa onda esquizofrénica. Jantar, jantar, jantaaaaar!...Esparguete para a panela, hamburgueres com cogumelos e natas, 15 minutos (sou mais rápida que uma bimba, acreditem). Cada grupelho quer comer na sua zona de conforto. Tabuleirinhos para todos com os respectivos regrigerantes a gosto, guardanapos, talheres. Uma trabalheira para eles, que têm de vir buscar o seu tabuleiro à cozinha. Como é que é possível, eu não lhes levar a comida aos quartos? Comem em cinco minutos, louça na máquina. mais uma corrida para ver se a aprilia ainda está no lugar e irem às "esplanadas", onde pedem uma jola para todos (isto sou eu em negação, deixem lá). Filho mais novo e amigo nerd mostram resistência à àgua e dá-se início a um complexo processo de negociação que mete banho antes de irem para a cama. Mais meia hora de nerdice no pc, mais uma dúzia de zombies mortos. ok. Amiga da mais velha vai-se embora e os outros dois continuam no quarto, a ver o resto do filme (isto também sou eu em negação, mas pronto). Entra o mais velho às onze, disparado porta dentro (é sempre assim) com a tropa acneica: vieram buscar as mochilas, de que se esqueceram. Eu, de roupa interior a vestir o pijama, só tenho tempo de me atirar para a porta do quarto. Já composta, ponho-os a todos na rua, com um ultimato de cinco minutos e mando os nerds para o banho. Bato à porta da mais velha e espero muuuito tempo até a abrir (em negação, mas não parva). Dou mais meia hora ao emplastro, porque amanhã é dia de faculdade. "Oh mãe, é só acabar o filme...". Olho para a televisão e estão a ver o Saw III: Já se sabe como acaba: morrem todos cortados aos bocados portanto, dentro de meia hora, andor. Espero que as hordas se retirem enquanto acabo de arrumar a cozinha e penso seriamente em transformar a minha casa numa pousada da juventude. Pode ser que saque alguns fundos comunitários ou isso. Por volta da meia-noite, quando começo a abancar no sofá, dá-lhes para me virem, à vez, contar os problemas do dia. O que normalmente é eufemismo para ceia. Leites com chocolate, "Ficam melhores quando és tu a fazer, mãe!" (sacanas!) e pão com manteiga (quando sobra algum,, o que é raro). À uma já sei que o G chinou o D, que a B voltou a andar com o C, que o setôr de informática é um retardado mental e que tenho recados para assinar por "falar demais nas aulas". De ambos os rapazes em colégios distintos (deve ser um gene). Isto tudo, portanto, começa depois de um dia de trabalho que acaba às seis. Percebem agora? Tweetar
Estou numa esplanada a tomar café e a ouvir inadvertidamente (e algo contrariada, admito), a conversa de dois adolescentes nerds com um crespúsculo de barbicha que lhes escurece as borbulhas.
A comunicação entre ambos é dolorosa, parece que vomitam enquanto falam, nunca fecham completamente a boca e cada palavra é intercalada por “pá”, “meu”, “chavalo”, “cena”, “puto”, “esquece” e “tipo”. A confissão do nerd número um prossegue alto e bom som, e nem todo o meu pudor lhe consegue fugir. “Meu, a Sara entrou no karaoke da praia norte e eu, tás a ver, deixei de ouvir as conversas. Chavalo, deixei de ouvir tudo, só olhava para ela e a mine tremia-ma na mão, todo eu tremia, puto, suava da cabeça aos pés, tive que vir cá fora apanhar ar, sentia-me doente”.
Tento captar o som das notícias no ecrã da espalanada, mas o pobre insiste em dar-se a conhecer ao mundo, ou, pelo menos, ao segundo nerd, a mim e à velhinha que lia o correio da manhã e comia o éclair.
“Quando eu e a Sara estamos juntos não sei o que se passa, deixamos de ver os outros, não existe mais ninguém, chavalo, é uma cena que vai muito além da cena física tás a ver, como o sex (aqui baixa um pouco a voz, mas não o suficiente) com a Patrícia. “Ah, a Patrícia, pois...”, diz o nerd número dois que aparenta estar desertinho de bazar para o computador. E o primeiro continua, num estilo megafone confessional: “No outro dia estivémos na praia do V.” (e eu a pensar: Ah.... a minha praia, o cenário perfeito para o marmelanço, afinal o nerd não é assim tão parvo como parece), “... e estivémos duas horas só agarrados, a ver o mar, puto!"
(retiro o que disse)
"A ver o mar! Foda-se, eu nasci a ver o mar, aquilo não tem interesse nenhum mas nesse dia foi diferente, vi a cena doutra maneira, tás a ver? Não sei o que se passa comigo, caralho...”.
E eu, na mesa ao lado, a fingir que o telemóvel me interessava, com vontade de lhe gritar:
meu,
puto,
chavalo,
tipo,
esquece,
essa cena chama-se Amor!
Vários anos passaram. As gracinhas tornaram-se em graçolas, a medição de forças passou a dramas de cortar à faca, a esperteza saloia aumentou exponencialmente e a minha paciência, surpreendemente, melhorou consideravelmente, derrotada pelas evidências. Amoleci, resignei-me, quem sabe. Já não estou à altura deles. Nem física nem intelectualmente. Entretanto, e para não perder este diário de crescimento, vou passar para aqui os episódios que entretanto têm sido apenas partilhados no facebook, entre amigos. Não quero que pensem que o passar dos anos normaliza as relações familiares. Não, não incorram nesse erro. Agora é uma guerra em todas as frentes. Com armísticios amorosos pelo meio, é certo.
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